sábado, 27 de junho de 2009

Quarto 33.

Perdeu a hora. Miguel raramente o fazia, mas se deixou levar pelo calor do edredom e pelo colo macio de sua mulher, e agora estava meia hora atrasado.
Levantou-se correndo, vestiu-se com pressa, colocando um par de cada meia, sem sequer notar. Não tomou café, não fez a barba, escovou os dentes rapidamente e tirou o carro da garagem.
"Não vai dar tempo de levá-lo hoje, uma pena" - pensou.
Ao chegar no hospital da cidade vizinha, após ter rodado por aproximadamente 30 minutos, estacionou seu carro, saiu dele, espreguiço-se, suspirou.
Doia-lhe tudo, sempre que ia até lá. Doiam-lhe as memórias e o coração feito em frangalhos. O primeiro dia em que pisou naquele lugar nunca sairia de sua memória. Sua querida Beatriz entrou nessa prisão, com um lindo jardim de inverno, um grande e confortável refeitório e seis refeições ao dia, para nunca mais sair.
Tinham planos, tinham um filho a caminho, tinham a paixão juvenil e aquela vontade de mudar o mundo, em seus corações. E ela, era praticamente um belo par de olhos verdes, redondos e brilhantes, dos quais ele sempre se lembrava nas noites em que a poluição da cidade deixava algumas estrelas solitárias aparecerem. A pele branca e macia, os cabelos castanhos e desalinhados caindo em suas costas. Não podia nem olhar para um lírio, sem se lembrar de sua querida Bia.
Casou-se de novo, alguns anos após o acidente. O sorriso de Sandrinha havia prendido seus pensamentos durante os primeiros anos, e Miguel achou que a felicidade havia voltado para sua vida, que finalmente daria continuidade aos planos que com Bia foram inacabados. Pura ilusão. A dor de saber que Beatriz estava presa em um hospital roubara todas as esperanças que ele tinha.
Ela, logo ela, que tanto adorava a liberdade, que adorava pisar descalça na grama molhada, que adorava sair de casa e pisar no jardim, depois das chuvas fortes de março...
"É pra lavar a alma Miguelito, vem também"- E sorria, aquele sorriso largo e convidativo. E Miguel ia, não por acreditar que iria realmente lavar a alma, mas para estar estar com Bia, para fazer sua vontade.
Agora, toda aquela alegria estava presa entre as quatro paredes de um quarto sem janelas. O remorso e as lembranças engoliram de uma só vez toda a felicidade que Miguel esperava voltar, com ansiedade. A culpa corroeu a felicidade que Sandra poderia trazer.
Mais do que os sentimentos de culpa, o amor ainda ardia no peito de Miguel, e as palavras de Beatriz ainda sopravam em seu ouvido, nas noites em que o vento era demasiado forte, e os cabelos dela ainda roçavam de leve sua face, nos fins de tarde ensolarados.

"Não posso ficar sem seus olhos minha querida, nem que tenha que me contentar em apenas olha-los, apenas isso... se ao menos tivesse esperado alguns anos... se ao menos tivesse lhe sido fiel, se tivesse me dedicado mais... Cinco anos, Beatriz, por cinco anos você dormiu, e não pude lhe esperar. Fui covarde, egoísta, sei que você teria me esperado por muito mais tempo. E agora, em todo o meu egoísmo de homem infeliz, volto fielmente pra te ver toda semana, mas para me satisfazer apenas, para com o seu sorriso triste poder me alimentar de lembranças doces e continuar vivendo, na vã esperança de que um dia as coisas voltem a ser como antes..." Perturbado por seus pensamentos, Miguel seguiu para a porta de entrada, fazendo o caminho que para ele era quase automático. Passou direto pelo balcão de entrada, acenou rapidamente para a mocinha da recepção, dirigiu-se para o quarto 33.
Passou por um corredor, mais outro e outro. A porta estava aberta, uma enfermeira estava servindo gelatina à moça deitada na cama. Moça pálida, triste, magra, fraca... mas linda, sempre linda.
Olhou Miguel pelo canto do olho, aquele olhar que ele tão bem conhecia, sorriu. Ele sorriu de volta, sentiu uma súbita vontade de chorar.
"Está atrasado, Miguelito. Quero conversar com você"
"Estou atrasado há alguns anos, querida Bia"
"Sente-se, quero olhar seu rosto bem de perto hoje... Não trouxe Pedro?"
"Não quis acordá-lo, com toda aquela pressa"- esboçou um sorriso.
Bea ficou séria, a notícia de não poder ver seu filho não a agradou. Recompôs-se, começo a falar, um tom suave, doce, parecia cantarolar as palavras que saiam de sua boca.
"Miguelito querido, espero que entenda meu pedido. Você sabe que é o amor da minha vida, sabe que sim, mas peço que não volte mais. Me dói olhar para o seu sorriso, e saber que ele não é mais meu. Me dói ver as tardes de domingo morrerem solitárias, e saber que não é em mim que você encontra o carinho. Quero que você seja feliz, mas não quero ver toda essa felicidade. Não me entenda mal, mas sei que estou fadada a terminar meus dias aqui, e quero morrer tranquila. Sempre choro quando você se vai, mas esta vai ser a última vez."
"Mas, Bea..."- Engasgou, não conseguiu terminar a frase.
Beatriz se manteve firme, agora falava séria:
"Não te esqueço Miguel, não te esqueço... espero que não esqueça de mim também. Agora vai, e leva contigo as lembranças bonitas que tivemos. Adeus, Miguelito."
"Bia, não pode me pedir isso. Não te esqueço, claro que não, mas por favor, por favor, me deixa voltar, me deixa cuidar de você, que um dia isso muda, um dia tudo volta, um dia a gente volta pros passeios de barco Beatriz! Você adora os barcos!"
"Miguel, vá embora, por favor..."- Ela agora chorava.
Olhou-a uma última vez, colocou o chapéu, saiu carregado e vagarosamente.

Céu cinza lá fora, uma chuva a caminho. "Bia adora a chuva, adora a chuva..."
Sentou-se na calçada de frente para hospital, olhou fixo a janela do quarto 33, a chuva veio e Miguel chorou.

4 comentários:

Jenny Souza disse...

Nossa, fiquei meio speechless.
Meio melancolica, suas palavras são muito fortes, suas passagens muito cheias de sentido. Pude ver tudo.

Obrigada !

Anônimo disse...

Tão triste.. :/

Ferdi disse...

Se você queria me fazer chorar, fique feliz.. :~
Mas os bons escritores são sempre assim, sempre a nos fazer rir e chorar sem piedade alguma.

Ah, minha escritora.. (:

Natália Albertini disse...

ALOU?!
ALOU, DEUS?!

Luísa, oi, vai se foder?!
Como eu passei tanto tempo sem ler tudo isso aqui?
Não...ó...Ó! Assim não dá, tá?Acabei de passar delineador e já borrou tudo. u.u'

For God's sake, Lulu... o.o'
Não...isso é...speechless.
De boa, não para nunca de escrever, tu tem MUITO futuro!
Que orguuuuulho! ><"

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